Por: Dinis Costa
Gatinhava a década de oitenta, num dos corredores, labirínticos de linearidade, do Convento de Mafra (EPI) alguém me chama com força hierárquica. Era o Oficial PP, chefe da Secção de Educação Física.
- Estás nomeado para a equipa da Escola de Corrida e Orientação que vai haver depois de amanhã. Vou mandar passar a guia de marcha.
- Mas, dá licença, eu nunca fiz isso… Orientação.
- Mas já fizeste corrida e corres muito que eu sei, já tens 50% e outros nem isso fazem. Não venhas com desculpas. Estás nomeado. Olha que é depois de depois de amanhã e temos que ir lá dormir.
Nessa noite dormi pouco e mal, não se ouviram as asneiras mas pensei-as, antes de dormir ainda fui rever a forma como se tiravam coordenadas (que era o que fazíamos nas topográficas).
No dia seguinte mostraram-me uma Carta Militar com bolas (círculos) e os pontos (balizas) estavam no meio tinha-se que ir lá furar o cartão no quadrado certo. E, era só isso e depois correr, correr muito para chegar primeiro (dizia o Oficial PP).
Dito assim até parecia fácil.
Pelas quatro e meia alvorada, pequeno-almoço às cinco e meia no Regimento de Comandos, Unidade organizadora. Saímos às seis, ainda de noite, sem saber para onde nos levavam. À época havia sempre grande secretismo. A coluna pôs-se em marcha, apercebi-me que passámos a ponte 25 de Abril.
Fui sacudido e a minha cervical rangeu, abri os olhos, tínhamos saída da estrada, o sol já raiava na linha do horizonte. Passados alguns solavancos desconfortáveis a coluna imobilizou-se mas as portas não se abriram.
Vem a explicação, quando tivermos ordem vamos sair para a nossa tenda e depois de entrar não podemos sair, por isso muita atenção, não deixem ficar nada que necessitem. Saímos. Caminhámos alguns metros e vimos o bivaque (hoje chamam-lhe arena com alguma segurança porque já não existe cabeça de casal e se não há cabeça…) e lá estavam as tendas identificadas e alinhadas por unidades do Governo Militar de Lisboa (que já não existe) mulheres ainda não existiam.
As latrinas eram a uns 50 metros e no respeito da direcção dos ventos dominantes. Uma vala com cerca de um metro de profundidade e dois de comprimento. Havia uma prancha de madeira ao través que estava dentada de meia-lua ao centro, do lado das arrecuas.
Um rectângulo vedado com panos de tenda, com sobreposição do lado da entrada, dava protecção das vistas
O fio de sisal, que já fora usado nos ilhós dos panos de tenda para lhe dar forma, passava pelo interior do rolo do papel de fax e ia abraçar um ramo que o mantinha suspenso, ao alcance da mão tomada que fosse a posição.
Necessidades de carácter sólido implicavam comportamento de felino doméstico com princípios de higiene, cobrir o que se fez recorrendo a uma pá que ali estava espetada num monte de terra fresca.
Se perguntarem o porque desta passagem? Eu respondo. É que eu fui lá, pelo menos duas vezes, na altura chamava-se nervoso miudinho ao stress. Mas, apesar de tudo, onde fiz mais foi durante o percurso.
Tudo balizado na área de partidas e aquecimento, balizamento guarnecido por meios humanos imbuídos de missão e autoridade cega a súplicas. Mesmo que fosse de forma tentada dava desclassificação e não se falava mais nisso. “Ninguém mijava fora do penico”, neste caso fora da latrina.
Havia um corredor que dava por quatro dos do convento, ou mais, - onde um jipe circulava e pode circular se necessário for e eu não deveria ter circulado. Corredor suficientemente largo que não permitia a comunicação - até a gestual ficava nublada.
Tudo que fosse para a zona chegadas já não regressava.
A transferência de qualquer equipamento tinha que ser solicitada. Se fosse autorizado, vinha um portador, da organização, que vistoriava. Havia sempre um controlo apertado até partir o último elemento. Só aos delegados era permitida alguma liberdade de movimentos, mas se fossem para junto dos atletas que chegavam já não podiam comunicar com os que ainda não tinham partido.
Fui chamado à boca pequena. Lá vinha mais uma ordem, e aquelas eram para cumprir sem hesitações.
- Estás a ver aquele e aquele ali? São os melhores!
Pelos comentários percebi que um deles era o campeão, na altura e pertencia aos Comandos.
- Vais partir no princípio, vais devagar e como corres bem... quando os vires zás que nem uma lapa. Percebes-te!
Ouviu-se: dentro de dez minutos vão ter inicio as partidas. Ouve-se o meu número e sobrenome no megafone, seguido da palavra prepara.
Entrei no funil pela parte mais estreita até ao gesto de alto. Parei.
- Pode seguir, são três minutos até à partida, sempre pelo carreiro.
A vegetação e o ondulado do terreno esconderam-me de imediato, lembro-me que o terreno era saibroso e a vegetação barrava-me o perscrutar distante.
Não tinha qualquer receio da floresta, cresci no seu ventre, o problema era como é que eu vou dar com os pontos a correr?
Deram-me a carta em silêncio e disseram:
- Pode partir.
Parti em corrida simulada e parei logo que deixei de os ver. Pus-me a mirar a carta enquanto matutava. Olhei para o primeiro ponto e comecei a caminhar na sua direcção. Havia um carreiro e mais à frente um aceiro que não estavam na carta.
Passou um atleta em saltos de lebre, mato fora, perdi-o de vista e de som.
Tudo que fosse recente não estava na carta e a vegetação também não. Relevo era reduzido para um transmontano. As curvas de nível estavam na carta, mas no terreno não eram vistas. De curvas eu só discernia sobre as dos caminhos o que de pouco me servia, os caminhos eram poucos. Havia e há outras curvas, conhecidas pelo instinto mas essas não eram para ali chamadas e se fossem desorientavam-me o raciocínio.
Tacteava o terreno com o olhar, em postura de Suricate de vigia, em busca de um vislumbre, de cor laranja e branco, e lá estava ele no final de um carreteiro bem aconchegado à vegetação para não se constipar e protegido de olhares indiscretos não fossem os atletas encontra-lo.
Havia que continuar, sempre pelos caminhos, nem que isso implicasse ir ao Samouco e voltar,
O próximo era uma pequena elevação no meio da floresta, pus-me na curva do caminho mais próxima e fiz, tracei uma mirada e lá vou eu, andei a distância julgada por conveniente, trepei a elevação, convicto. Pisei o mato todo e. nada! Aqui caíram-me as certezas da horta.
Atarantado olhei para outras elevações próximas e decidi subi-las e desce-las o mais depressa possível, usando a técnica do Caracol tonto e do Quadrado paralelepípedo.
Exausto parei no cocuruto da última, coçando a cabeça em silêncio, como quem caça à espera. Ouço barulho de ramos a partir e olhei, vi uma camisola que corria, jogando à cabra cega a cada raio de luz, sem pernas no meio da vegetação, que era mais que rasteira. Seguia com o olhar, baixando a silhueta, fez-se corpo e depois pernas e subiu a elevação mais distante, que ficava à minha direita, fez uma vénia quase imperfeita, penso que por respeito à baliza, e curvado foi-se sem delongas numa escorrega de fuga.
Reconheci-o, “era um daqueles” dos melhores. Olhei para ver a direcção e só já vi um recorte de nuca sobre silhueta que se esvaneceu rápido.
Levantei-me e fui a correr sempre a olhar para a pequena elevação não fosse ela sair do lugar numa distracção minha. Estava ali a baliza a rir-se de mim e a dizer o que eu não entendia.
Pensei: estive tão perto mas o caracol enrola de acordo com a sua natureza. O Raio do gastrópode terrestre, seu esqueleto e minha metáfora.
Desilusão, decepção, desfalecimento, descrença dúvida tudo eu senti naquele momento. Porrrrra para isto! Grande carvalho! Plantei vários naquela floresta onde não vi nenhum.
As calças começavam a ficar sem pernas e as pernas sem calças, e o corpo guardava as marcas das chicotadas recebidas da vegetação que se batia, sem arredar pé, na defesa do seu território.
Desistir só por cima do meu cadáver por isso havia que continuar sem saber para onde. Lembrei-me da direcção que o outro “campeão” tomou…